sábado, 23 de agosto de 2008
Ciranda de fogo
Não se importou muito com o que haveria de fazer. Por que deveria?
A aula de piano terminara um pouco mais cedo, ela fechou os cadernos e se despediu da professora. Nem bem encontrou a porta, desligou o celular e respirou fundo. Olhou o parquinho à sua frente e pensou nos filhos que a essa hora deviam estar em alguma das tantas atividades que praticavam.
Sentou-se no banco e ficou observando as babás conversarem enquanto as crianças brincavam. O calor suave tornava o ambiente mais agradável ainda... Pensou no tempo que perdera longe de seus próprios filhos, sempre aos cuidados de babás...
Viu o motorista chegar e virou-se de costas. Não lhe devia satisfações. Afundou-se no banco e deixou-se estar por mais algum tempo, tirou o salto e tocou com seus delicados pés a areia fina...
Fechou os olhos e passou apenas a ouvir o barulho dos carros ao longe e os gritinhos alegres dos meninos. Sem os abrir, tirou o celular da bolsa e deixou-o cair no chão enterrando-o com os pés. Parece-me ter cochilado...
Quando lentamente abriu os olhos, viu uma árvore alta bem a sua frente, na qual não havia reparado ainda... Era um estrondoso pé de manga ainda carregado. Pensou nas crianças de sua época. Nunca encontraria um pé carregado em plena estação, mesmo naquela área da cidade. Neste momento, sentiu penetrar por seus pulmões um quê de aventura, um desejo pelo perigo que nunca antes aquele corpo experimentara...
Quando deu por si, estava sentada e meio às folhagens descascando a fruta com os dentes e soltou uma deliciosa gargalhada. Ao virar-se para obter outra, sentiu que a calça bem passada com vinco lhe impedia tais movimentos. Então percebeu suas mãos de unhas bem feitas pintadas de vermelho escarlate, onde a pele já não era mais tão rígida. Era a primeira vez que teve tempo de notar o quanto envelhecera. Bateu no bolsos a procura de um espelho, mas só pode encontrar o rico medalhão que trazia ao pescoço e deixou-se mirar por alguns instantes... Quem seria aquela senhora? Novamente soltou uma gargalhada. Dessa vez no entanto, se diria que foi um tanto sinistra...
Limpou as lágrimas que se ajuntavam em seus olhos a convite do riso e jogou longe o medalhão. Sentia-se livre e algo lhe dizia até que poderia voar se apenas o desejasse. Não o fez. Apenas recostou-se numa galha que lhe passava às costas e esteve a ver desenhos nas nuvens enquanto balançava as pernas despreocupadamente.
Não sei dizer quanto tempo esteve assim, apenas sei que viu o mais belo entardecer de sua vida e esteve ainda a contar estrelas por um longo espaço de tempo. Poderia, inclusive, estar ali para sempre! Não fosse uma luz repentina ter chamado sua atenção. Olhou para baixo e seus olhos brilharam ao ver lindas labaredas de fogo a contornar a figura de uma jovem.
Mal tocara os pés no chão, pôde sentir o calor do fogo a queimar-lhe a alma. Fechou os olhos numa piscada longa e logo quando os abriu viu, a menos de um metro de si, a menina com tochas de fogo sorrindo-lhe gentilmente.
Sem nada dizer, conduziu-lhe pela mão até o meio de uma roda onde haviam outras meninas que assim como a primeira, giravam bastões ou jogavam suas claves flamejantes. Como que brincando de roda, faziam belas figuras a sua volta e vez por outra cuspiam enormes labaredas de fogo esquentando seu corpo por todos os lados ao mesmo tempo.
Esteve a girar como bailarina, como a muito tempo não fazia... Tocou a ponta do pé com uma das mãos enquanto a outra permanecia esticada para o alto. Levantou-se graciosamente nas pontas dos pés e saltou leve, bela, como só ela soubera fazer em seu tempo.
As meninas lhe sorriam e pareciam possuir olhos de gato que brilhavam durante a dança. Nunca nada lhe parecera tão gostoso, e essa sensação se misturava com o calor das chamas e com o sopro gélido do vento entre uma e outra nota.
A ciranda se locomovia como um tufão, mas seu caminhar era ritmado por uma melodia surda que sentia envolver-lhe desde a sola dos pés descalços até a ponta de seus cabelos tingidos...
E a roda foi se afastando cada vez mais, sem perder o ritmo ou alterar o compasso até que não se podia ver nem sentir mais nada...
Não sei dizer para onde foi, ou o que se deu àquela rica senhora... Apenas cabe a mim dizer que sua alma estava em paz.
Morena - mai/06
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