sábado, 23 de agosto de 2008

Renascer para uma vida sem reflexo

Na qualidade de monitora de literatura portuguesa – romantismo, é de minha responsabilidade substituir a professora em uma ou outra ocasião que precise se ausentar.
Pois bem, essa semana ela não virá e hoje foi a primeira aula que ministrei em seu lugar.
Falamos de contos fantásticos e de alguns pontos que me são de especial interesse, como a questão do duplo. Analisamos “O Homem da Areia” de ETA Hoffmann, em que o personagem principal se apaixona perdidamente por uma “boneca de madeira”. Segundo ele, ela é a ouvinte perfeita, que não se distrai e que compreende-o no âmago de seu ser. Natanael não consegue perceber que sua amada não passa de um “autômato sem vida”.
Discutimos a respeito de nossas vidas e do espelho que freqüentemente procuramos em nossos relacionamentos. Olímpia não passava de uma boneca, mas nela, Natanael se via refletido por inteiro. Ela nada dizia, apenas suspirava, e nesse suspiro Natanael sentia-se completo. Porque não procuramos no outro suas próprias características. Procuramos o que convenientemente chamamos “afinidade” mas que nada mais é que nosso reflexo.

Naquele momento quis que alguém especial participasse da discussão...

É inevitável sentir-se extremamente egoísta ao dar-se conta de que procuramos pessoas que ecoem nossa alma em detrimento daquelas que, em suas diferenças, tenham algo a acrescentar a nossas vidas. Amamos o espelho. Amamos o desejo de posse.
Marx transfere essas relações ao capitalismo quando diz que não compramos mercadorias e sim o desejo de obtê-las. Muitas vezes são bens supérfluos e tão desnecessários que vão parar no canto do quarto, esquecidos e sem uso.
Discutimos também o amor que Natanael nutria por Clara antes de conhecer Olímpia. Note que o termo utilizado foi “nutrir” e não “sentir”, porque acredito no amor como objeto que se desenvolve conforme nutrido. Sentir o amor dá um tom de passividade ao sujeito. “Amor passivo” me soa por demais antagônico.
Em fim, Natanael é um personagem pesado, sombrio, confuso, dramático e apaixonado. Clara é o ser amado desde a tenra infância, a transparência, pureza, inocência e racionalidade também amante de seu oposto. Parece-me prova de que o ser humano se completa em outro que seja exatamente seu contrário, até que Narciso grite em nosso peito e nos conduza a procura do autômato, réplica fracassada do próprio ser.

Mais uma vez quis que alguém estivesse presente: ele, o meu lado racional...

Natanael volta a sua Clara depois de ver Olímpia sem olhos e desajeitadamente carregada sobre os ombros de um de seus criadores. Volta para Clara, mas não sem antes passar dias internado. Só que existe um porém nisso tudo, Natanael não pode mais viver naquele mundo. Ele não se encaixa. Nunca se encaixou. E ao menor sinal remetente àquele passado “artificial”, ele perde o controle de si mesmo, quase mata Clara e se mata.
Um não pode viver sem o outro e os dois são necessários para o equilíbrio. O “espelho” fica entre os dois, de forma que Natanael não pode mais ver Clara. Ele só pode enxergar seu próprio reflexo e sua própria loucura.
Será que todos temos alguém que nos completa? Platão descreve em “O Banquete”, o mito do Andrógeno, seres que eram superiores aos homens e às mulheres, que por desafiarem Zeus, são castigados e repartidos ao meio. Seu destino é vagar sobre a Terra na eterna busca de sua “alma gêmea”.
Não acredito em romances tão perfeitos ou em pares tão hermeticamente fechados em si, mas acredito que um primeiro passo para todo ser humano é sair da frente do espelho. Para todos nós, natanaéis das artes, existem claras, puras e racionais, para dar vazão a esses furacões de sentimento.

De repente me sinto impulsionada a buscá-lo na engenharia e finalmente tê-lo em minha discussão...

Morena – mai/06

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