segunda-feira, 19 de abril de 2010

Hipnose

Vou até a escola com o único objetivo de ser sorteada e poder efetuar minha matrícula, e assim é que, na verdade, começam as melhores histórias: sem pretensão nenhuma de sair do planejado.

Sete pessoas para seis vagas. E de repente tudo fica tão tenso... Serei eu a azarada a ficar de fora? Seis papéis brancos e um pardo. A convidada, de olhos vendados separa alguns papéis com os dedos, ainda com a mão na sacola transparente. O papel pardo cai e de repente eu penso pronto! Se vai ser um branco, vai ser o meu! De repente todos os outros lhe escorregam e ela recorre ao papel pardo, sozinho no fundo do saco. Um suspiro aliviado deixa meu corpo ao olhar meu comprovante branco.

- Maria Letícia!

É colega, quem sabe alguém não desiste e você consegue se matricular? – penso ao caminhar sorridente para a sala de matrículas.

- Você que está com bebê no colo e o senhor têm preferência!
Sem problema! Penso no meu cantinho... a vaga é minha! Passa quem quiser na frente.

E o bebê é o mais fofo de todos! Sorri de graça e eu me encanto com suas mãozinhas e coxas gordinhas. Faço um comentário em voz alta e alguém complementa da porta. Levanto os olhos para responder quando me deparo com um sorriso lindo! Tão incrivelmente brilhante que iluminou a sala toda por alguns instantes. Sorrio de volta sem ter a mínima ideia do que estava falando. E abaixo a cabeça para olhar o bebê, mas sem conseguir vê-lo mais...

Concluo minha matrícula e levanto os olhos para sair quando rapidamente fotografo a figura: chinelo de dedo, calça de tecido levemente colorida. Camiseta de mangas curtas, um dred único amarrando o resto do cabelo comprido de modo charmosamente desordenado. A pele é queimada de sol, os olhos esverdeados, a barba quase loura, da mesma cor dos cabelos e aquele sorriso também de graça. Sorrio de cabeça baixa e envergonhada enquanto passo por ele com mil documentos na mão e me dirijo ao carro. Um único pensamento concreto me vem a mente: porque um cara assim nunca me dá mole? E sigo pensando no pouco tempo que tenho para almoçar e no trabalho que me levará noite a dentro.

Entro no carro e, sem fechar a porta tento organizar meus papéis no banco do carona. Em seguida ajeito minha bolsa de forma a não amassar nada. Ouço uma voz do lado de fora, mas por algum motivo não dou atenção, viro para fechar a porta e me assusto ao dar de cara com ele. Fico meio em choque, hipnotizada por aquele sorriso por cerca de 1 minuto, que óbvio no tempo real não somaram 2 segundos, e sorrio boba como uma criança. Antes que eu pudesse me concentrar em ao menos tentar entender o que estava acontecendo, sinto meus lábios tocados por algo molhado e macio... Acho que eu pisquei e perdi alguma coisa...

Nessa hora, então, me envolve a cintura com braços fortes e parece que a minha alma começa a deixar meu corpo pela boca e pontas dos dedos. Quem é você que está me roubando de mim? E numa risada gostosa seguro seu rosto em minhas mãos:

- Eu não sei seu nome!

Ele, numa risada mais gostosa ainda me levanta do chão (ué, mas eu juro que estava sentada no carro!) e diz, sem tirar a boca da minha, que nomes não importam.

- Claro que importam! Eu não sei o seu!

Ele pára, se afasta uns quase 10 cm, e dessa vez me rouba a alma pelos olhos enquanto sorri e me diz uma palavra bonita, sonora, forte. Mas que não devia ser o nome de uma pessoa. Mal tem tempo de perguntar o meu até que volte a me beijar com força.

- Eu esqueci seu nome! – digo entre risadas infantis.

Ele repete, mas não sem tirar aquele sorriso lindo do caminho. E é óbvio que esqueci de novo e esqueceria mais dez vezes enquanto não fechasse os olhos e me concentrasse apenas no som da palavra.

Entre beijos, temos fragmentos de conversa, suficientes apenas para saber que ele se matriculou no horário antes do meu, e que a noite eu iria sair. Fico contente em saber que minhas manhãs de quinta-feira seriam sempre iluminadas e parti correndo, mas não sem antes ganhar 15 beijos de saideira e sem nem lembrar que hoje não posso mais almoçar.

Dirijo feito uma doida. No trabalho, me perguntam se vi passarinho verde. Ah!.. Penso comigo, se eu só tivesse visto o sorriso não era a metade! E em seguida um amigo confessa sonhar com o dia que vai ser atacado assim, na rua por uma mulher linda ao meio dia de um dia de sol...

Nem bem começo a trabalhar recebo uma mensagem falando do meu olhar, da minha energia, e me convidando a encontra-lo no final da tarde. Com a cabeça quase no lugar, respondo que trabalho até mais tarde, que posso encontrá-lo a noite onde eu disse que estaria.

Durante a tarde, entretida com o trabalho, esqueço e foi tudo tão surreal que até se entende o porquê.

Acabo saindo mais cedo, vou em casa, tomo um banho e resolvo ir a uma livraria matar o tempo, e enquanto caminho entre uma estante e outra de repente lembro dele e quero reaver a parte de mim que ele levou. Reflito por um momento e não encontro problema nele me encontrar ali. Mas não posso conter as risadas enquanto mando uma mensagem. Me sinto uma criança na véspera do Natal...

Segundos depois o telefone toca e ele me conta que está indo pra casa tomar um banho para me encontrar mais tarde. Faço uma cara de “pow!” mas acabo achando melhor. Só que antes de concluir a conversa, ele solta “a não ser que você queira me acompanhar” e eu, sonhando, respondo com um manhoso “pode ser!”. “Em 10 min eu estou aí”.

Desligo o telefone e quase volto ao normal, pensando em porque eu disse aquilo. Mas calculo que estou de carro, sigo ele e qualquer coisa eu vou embora.

Três dias depois ele chega. Não consigo entender onde ele está, o telefone corta, a ligação cai, eu rodo o shopping e finalmente entendo o que ele quis dizer. Dou a volta para encontrá-lo e, do final do corredor, vejo ele com as mãos no bolso e olhando para baixo. Vou caminhando ao seu encontro até que ele me vê e abre aquele sorriso... De repente meus olhos começam a girar e meus braços se levantam a minha frente, igualzinho um zumbi de desenho animado. Nem sei se penso alguma coisa, estou completamente drogada e, quando dou por mim, estou dentro do carro dele colocando o cinto. Sem sair do transe, penso “qualquer coisa eu volto de ônibus”.
No carro, mais fragmentos de conversa, entre os beijos roubados nos sinais fechados, faixas de pedestre ou simplesmente nas retas... E de repente olho pela janela e vejo a cidade se afastando e as luzes ficando cada vez mais escassas. Me preocupo: “Não tenho ideia de onde estou...”. Ele sorri e, depois de me roubar mais um beijo, me explica e diz que estamos chegando.

As luzes se acabam. Só tem mato dos dois lados e o pouco que se pode ver vêm dos faróis do carro na chuva fina. Bem mais a frente, vejo um portão de condomínio enfeitado com luzes de natal. E me vem um pensamento abstrato, com vontade de ser inteligível mas sem força para tanto: “ele tem vizinhos”.

O asfalto acaba e entramos literalmente no meio do mato. Já não posso entender muito bem o que acontece mas consigo definir uma casa na escuridão. Ele estaciona atrás da casa e a gente desce.

A cadela suja minha calça branca de barro, mas eu nem ligo. Ou nem percebo. Entro na casa impecavelmente limpa, sem um único prato na pia, vários livros despojadamente organizados pelos cantos e a música se manifestando através de instrumentos e CDs diversos. Me encanto e surpreendo ao saber que meu sorriso é médico e já me sinto adoecer só para ter suas mãos esculpidas a medir minha febre. E mais beijos, e beijos e carinhos... me lembro da hora e das meninas. Apresso o banho dele e sento na poltrona com o olhar vazio para um quadro... o efeito vai passando e já me sinto quase sóbria quando finalmente entendo os seios livres de uma índia.

Nessa hora, num sobressalto me percebo “onde estou? Quem sou eu?” E me apavoro por não encontrar resposta para a primeira pergunta.

Ele sai do banho cheiroso, me abraça e eu sinto seus ombros nus nas minhas mãos quentes. Seu sorriso quase me embebeda novamente, mas o medo não me deixa ir longe. “Você não assiste jornal não guria?” Penso quietinha, tentando não parecer estranha. Mas ele percebe, claro que percebe. Eu sou de vidro! Fico com pena dele, de ter se encantado por uma doida. E só penso em ir embora, e me angustio com a demora.
Quando chegamos de volta ao shopping, consigo relaxar um pouco, mas já tenho anticorpos. Sem zumbis dessa vez. Tento dizer que sou complicada numa tentativa frustrada de explicar que não sou assim, fui dopada por um sorriso...

Ele beija minhas mãos com carinho e inventa uma desculpa para voltar pra casa. Eu, me despeço querendo me desculpar, mas sem pulso para tal; e desço do carro para não mais vê-lo.

Na sala dele, conto sempre cinco pessoas. Tenho vontade de perguntar, mas acabo optando pelo mistério...

Meses depois o encontro em um show. De cabelos curtos, o que me impressiona (mais do que a constatação de que ele realmente existe), é o fato de ele estar dançando comigo... Me desligo um pouco da conversa que estou tendo e observo meu próprio rosto entrelaçado com o dele. Vejo nos meus olhos que alguma coisa me incomoda e, de longe tento perceber o que... mas ele gira e de repente está de frente para mim. Eu finjo que não o vejo e volto para a minha conversa. Até tenho vontade de falar com ele, mas lembro de como nos conhecemos, reparo nos amigos a minha volta e concluo que duas de mim é muito para uma noite só.

Antes de ir embora, ainda o vejo a me beijar, e a pontinha de um sorriso se abre no canto da minha boca...

Morena - abr/10

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