segunda-feira, 23 de julho de 2012

Negra

- Negra. É o que vejo quando olho no espelho. Já tive merchas ruivas, franja, cachos grandes que iam ate na cintura e também já tive a cabeca raspada. Hoje sou negra.
- Certo... Amanhã ainda vai ser?
- Claro! Sinto minha pele queimar, o lábio inchar e o nariz achatar cada vez que penso em mim mesma. Minha carne enrijece e meu samba fica sincopado.
- Ok... – concorda a moça do IBGE tentando disfarcar o tom de deboche - Só mais uma pergunta: qual a raça dos seus pais?
- Negros. Os dois são negros.
- Desde?
- Hoje.
- Certo... Me desculpe mas ainda tenho uma última pergunta: o que diz nos registros da polícia federal?
- Que meu pai é branco e minha mãe é parda, mas eles são negros.
- Ok! – Disse a moça desistindo da conversa para já pensar nas piadas que surgiriam quando seus colegas de trabalho ouvissem a história – Muito obrigada!

Ana fecha a porta e entra em casa com sua nova identidade consolidada. O rasta pedia aquela força e a dor da aplicação já a fizeram sentir a conexão com os antigos negros escravizados, seus antepassados. E recitava Castro Alves que estudava na aula de teatro: “Tinir de ferros, estalar do acoite, legiões de homens negros como a noite horrendos a dançar...”

A mãe se preocupava com a nova moda da filha, um rastafari! Mas por quê? Como se ela pudesse mudar a pele morena e o nariz afilado! Não, não podia. Mas por algum motivo isso não a convencia:

- Vai que de tanto que ela acredita ela acaba virando?

O pai dava risada:
- Isso é fase. Deixa a menina! Cada música linda que ela anda ouvindo... Já escutou algum dos Afrosambas? Ela me explicou esses dias, tem uma que fala de um Orixá...
- Era só o que me faltava! Alem de preta virar macumbeira!

Mas Ana, que desde sempre procurou seu espaço entre os primos paternos, não se sentia igual a eles. Mas também não se sentia diferente. Entende? Aquela era a familia dela! E por isso se sentia parte, mas ao mesmo tempo se sabia diferente. Mas como diferente? Feia?

E foi assim que passou os primeiros anos de sua adolescência: estudando nas melhores escolas e frequentando os melhores ambientes. No entanto, não podia ser feliz pela dor da diferença que carregava no peito.

- Será que todas as pessoas feias se sentem assim? – Perguntava às estrelas – Quase todos os meninos que eu conheço gostam da Marina, ela é tão linda! Queria poder ser assim...

E se juntava as meninas ditas “lindas” de sua escola. Tinha ela própria um preconceito com as feias. Como se fosse algo contagioso...

Um dia a escola teve uma palestra sobre reciclagem e ela conheceu Luara. Luara tinha a pele bem preta, cabelo de cachos grandes e nariz empinado. A boca grande de labios grossos enquadravam os dentes brancos e ela tinha sempre um sorriso ironico. Ela sim era a mulher mais linda que Ana ja havia posto os olhos. O jeito de andar, de sorrir, de falar, a maneira de olhar e de gesticular os dedos grossos de aneis grandes...
- Voce e linda! Voce nem me conhece ne?! Que vergonha... Mas eu tinha que vir aqui dizer isso!

Luara soltou uma risada gostosa e agradeceu o elogio.
- Como faz para ser assim tao segura? Tao charmosa, elegante...
- Nem sempre foi assim – respondeu com um sorriso de empatia e o olhar com um que de melancolia – nem sempre eu fui assim...
No folheto sobre coleta seletiva estava o site da ong e Ana nao se incomodou em clicar logo em “fale conosco”.

“Oi Luara! Aki eh a Ana da escola q vc foi hoje... Eu falei com vc na porta e kero mesmo q me responda: Como faz para ser taum linda, inteligente, esperta... Como???”
Enviar.

A resposta demorava tanto que Ana ja havia voltado a sua rotina normal de patinho feio, de conflitos e inseguranças normais de adolescente. Na verdade normais segundo os psicólogos e professores da escola, aqueles mesmos que tinham 45 alunos em sala e assim justificavam sua incapacidade de perceber uma única menina.

Caixa de Entrada:
“Primeiro voce usa óculos para parecer inteligente, depois aprende a fazer cara de inteligente, por fim estuda muito para ser inteligente de verdade! ; )”

E um sorriso calado apontou no cantinho da boca de Ana depois de mais um dia de auto afirmação da personalidade em detrimento da beleza.

Ana entrou na internet e procurou “mulher influente negra”. E ficou a observar dezenas de maquiagens, penteados lisos e cacheados, vestidos, sapatos e tintas de cabelo em famosas cantoras americanas... já se sentia entediar pelas celebridades quando notou um turbante, acompanhado de brincos étnicos e roupas coloridas. A legenda dizia “Gana”. E na foto seguinte teve sua alma roubada pelos olhos de uma senhora que dançava descalça segurando a barra do vestido com uma das mãos e com a outra apoiando uma trouxa de roupa que equilibrava na cabeça.

- O que elas têm que eu não tenho?
E a imagem senguinte era, na verdade, a de um homem. De terno despojado e olhando de baixo para cima. Ela poderia jurar que sentia até o perfume dele. Mas no final o que encantou foi o cabelo: ele usava um rasta com uma faixa grossa, quase um turbante.

“Cabelo Rastafari”
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E um mundo de cores e de tranças comecou a tomar forma diante de seus olhos. Seria essa a resposta de suas perguntas? Mas assim, tão simples?
- Bom demais pra ser verdade! – suspirou triste antes de desligar o computador. E antes de ir para cama chorar sua solidão foi na sala dar boa noite à mãe:
- Mãe, você é negra?
- Claro que não! Olha pra mim. Que cor você vê?
- Marrom.
- Então. E meu cabelo?
- É de mola! – e sorriu com a provocação – antes da escova definitiva né?!
- Que seja! Mas não tenho o nariz chato e meu cabelo é anelado, não ruim... Agora me dá um beijo e vai dormir!
E Ana pareceu esquecer o assunto, mas os turbantes, o rasta e Luara fizeram parte de seus sonhos aquela noite...

Alguns dias depois entrou no orkut de seu irmão mais velho para ver as fotos de sua nova namorada quando reparou bem lá no perfil em letras grandes para quem quisesse ver:

“etnia: afro-brasileiro (negro)”

E ficou assim, meio que em estado de choque por alguns segundos.
- Você se acha negro?
- Oi Ana! Se está tudo bem comigo? Está sim, adoro a Nova Zelândia... E você? Como está?
- Desculpa Joaquim, mas a ligação é cara e não dá pra usar o Skype porque o computador está no quarto da mamãe.
- Ok. Sou todo ouvidos...
- Então! Eu vi no seu orkut que você é negro! Como assim? Daí tinha que ouvir da sua boca o que quer dizer com isso.
Joaquim soltou uma gargalhada do outro lado – Por que isso agora?
- Eu preciso saber!
- Olha pra mim Ana! O que eu sou então? Japonês? – e riu novamente achando graça da situação – até porque se eu fosse japonês não tinha sido parado pela polícia metade das vezes que fui com a mesma desculpa esfarrapada de que alguém com o meu tipo físico tinha acabado de cometer um crime e eles precisavam me revistar. Isso quando eles eram legais, mas quantas vezes eu não apanhei até acharem minha carteirinha de escoteiro ou a da faculdade federal? Aprendi a deixar essas duas em um local bem fácil de achar pra quando fosse tomar bacu já acharem logo de cara. Se eu fosse japonês Ana, ia passar ileso.

Ana ficou chocada. Aquilo era demais para uma cabeça de adolescente. Ela e o irmão eram bem amigos, mas ela não tinha ideia...

- Por que nunca me contou?
- Que diferença ia fazer?
- E a mamãe sabe?
- Claro que não. Nem o papai sabe... Não tinha motivo contar pra vocês! Só pra deixar todo mundo nervoso!
- E por que me contou agora?
- Quem pergunta quer saber.
- É... acho que sim...

E os dois se despediram e desligaram o telefone. Que coisa mais louca! – pensava a menina. E de repente quis confirmar as histórias do irmão com algum outro negro.
No dia seguinte foi para a escola feliz pensando em sua “pesquisa” e decidiu perguntar ao primeiro professor negro que encontrasse. A escola era grande mas ela não encontrou nenhum na hora da entrada.

Durante o intervalo procurou com mais afinco e se surpreendia cada vez mais com a demora em encontrar. Usou uma desculpa qualquer do grêmio para sair da sala e foi procurando cuidadosamente em todas as salas do colégio. Nenhum!

Almoçou no colégio com o intuito de continuar as buscas no período vespertino e nada! A essas alturas já tinha expandido a procura, olhou na secretaria, nas coordenações, nas quadras de esporte, na diretoria e já ia embora triste quando resolveu parar para tomar água.

- Você! Nossa! Eu te procurei por toda parte! – disse Ana ao homem que saía do banheiro.

O homem se desculpou e perguntou do que ela precisava. Ana achou estranha a atitude, mas começou a entender quando viu as luvas de borracha até quase os cotovelos e o balde de água na mão. O único negro que ela encontrou em uma escola com mais de 500 funcionários onde pelo menos 100 eram homens, era um senhor e era o faxineiro.
- Nada não, o senhor já respondeu... Obrigada!

Ana chorou. Nem conheço palavras adequadas para descrever a tristeza que Ana sentiu com aquela constatação. Ela chegou em casa, se trancou no quarto e chorava de raiva, de idignação e ela, quase uma criança, sabia que precisava fazer algo. Mas o quê?

- Estou preocupada com a Ana! Já a uma semana que ela chega e logo se tranca naquele quarto...
- Amor, isso é fase! Que adolescente não passa horas trancada no quarto falando no telefone? Boas notícias: sua filha é normal! – respondia o pai de Ana.

E na manhã seguinte acordou determinada: depois da escola!
E passou a tarde toda entre puxões de cabelo e doses de dorflex, mas tinha a convicção de quem sabe o que faz. Porque faz.

- Prontinho! – e colocou um espelho na frente de Ana...

Se ela nao entendia de preconceitos, de racismo ou da solidão de ter a pele escura em uma familia de olhos azuis, naquele momento ela entendeu.
Se não podia alcançar a dor da exclusão e do preconceito de carregar no rosto uma identidade excluída, naquele momento ela pôde.

Se passou a vida toda sem entender que, na verdade, sua diferença não seria vista em um espelho sem cor e sem saber onde no mundo ela poderia se encontrar, naquele momento ela soube.

- Negra. É o que vejo quando olho no espelho. Já tive merchas ruivas, franja, cachos grandes que iam ate na cintura e também já tive a cabeca raspada. Hoje sou negra.
- Certo... Amanhã ainda vai ser?
- Claro! Sinto minha pele queimar, o lábio inchar e o nariz achatar cada vez que penso em mim mesma. Minha carne enrijece e meu samba fica sincopado.
- Ok... – concorda a moça do IBGE tentando disfarcar o tom de deboche - Só mais uma pergunta: qual a raça dos seus pais?
- Negros. Os dois são negros.
- Desde?
- Hoje.
- Certo... Me desculpe mas ainda tenho uma última pergunta: o que diz nos registros da polícia federal?
- Que meu pai é branco e minha mãe é parda, mas eles são negros.
- Ok! – Disse a moça desistindo da conversa para já pensar nas piadas que surgiriam quando seus colegas de trabalho ouvissem a história – Muito obrigada!
E daí em diante passou a carregar não só na pele mas no couro cabeludo o peso de uma identidade que finalmente era dela. Aos poucos percebeu que muito mais do que nariz achatado, cabelo crespo e a própria pele preta, ser negro é uma questão de identidade que, para ela, começou com um rasta e depois com o tambor de crioula no Maranhão. Não chegou a ser religião, mas virou religiosidade, e Ana morreu no Rio de Janeiro aos 90 anos atrás de um surdo ensinando um neto a fazer samba de roda.

Naiara - set/2010

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