Tiago tem 7 ou 8 anos de idade e um problema sério de concentração e aprendizado. Enquanto a turma termina a prova em 1 hora, ele leva em torno de 3.
Pedro é outro menino, de mesma idade, que acabou de mudar de colégio. No primeiro dia de aula, ele apareceu com os pais e avós que conversaram demoradamente com a professora sobre o comportamento dele. Na saída a avó invocou proteção divina para a professora e, com menos de 30 min na sala, o menino já quebrou todos os récords de indisciplina.
André é um terceiro menino, um pouco mais novo, que é completamente desobediente. Não fica sentado nem quieto na hora da explicação. Fala sem pedir permissão e está sempre com um brinquedo na mão.
Esses são três dos meus alunos pequeninos... Só que o que ninguém sabe é que
Tiago é um menino muito doce. Ele sabe ouvir na hora de ouvir e é extremamente interessado. Mesmo sendo bem menorzinho que os outros, ele não tem dificuldade em se enturmar, a sala toda adora ele e, a minha parte favorita: ele compõe. Me mostrou uma canção que fez ao piano com um ritmo e melodia que ele mesmo inventou. A mãozinha mal comportava as distâncias das notas mas a marcação era precisa e a canção uma gracinha.
Pedro tem uma capacidade incrível de rimar. É como se as palavras fossem brotando em sua cabecinha enquanto a gente fala. Ele é o primeiro a entender a explicação, além de ser um menino animado e pronto para as atividades.
André não consegue ver ninguém triste sem se sentar ao lado. E, mesmo que nessa idade meninos e meninas se odeiem, pra ele não importa, se alguém precisar ele vai estar ali com todo o seu carinho e atenção.
Hoje fiz uma prova e não fui bem. Terminei de cantar já frustrada pensando que devia ter reclamado menos, estudado mais, escolhido uma música mais fácil...
Que não podia ter ficado tão nervosa, que devia ter comido direito (para conseguir respirar melhor), que devia ter ido mais vezes ensaiar com a pianista...
Que devia ter me irritado menos com o modo como estava sendo ensinada e me preocupado mais com o que estava sendo ensinado, menos com com o sistema e mais com uma maneira de me encaixar...
Reprovei. Justo da vez que achei que finalmente ia pular alguns níveis, eu reprovei. Quis colocar a culpa do meu desespero em pensar que isso pode me custar a vaga de piano. Já liguei agoniada para minha professora e pedi ajuda. O que se é possível fazer? Ela me acalmou e disse que vai conversar com 1000 coordenadoras e tentar resolver meu problema. Mesmo assim desliguei o telefone e chorei que nem um bebê. A vaga do piano é, sem dúvida, de extrema importância pra mim, mas mais do que isso lembro que em 8 anos eu deixei de alcançar 100% de aproveitamento uma única vez. E justo agora que sou professora de canto e que estou me apresentando com músicos renomados do cenário brasiliense toda semana em pelo menos dois lugares diferentes, escuto que a minha colocação está péssima, que estou sempre aquém da afinação, que isso no meu nível é inadmissível, que afinar é o mínimo para cantar... Justo nessa época tão importante eu não tenho uma intervenção da minha professora, no sentido de me dar suporte e ao menos comentar que na sala eu fui bem melhor do que na prova e nas apresentações. Porque se não fosse verdade não teria me deixado cantar uma canção a capella e teria sugerido que não fizesse a outra... não? Até a pianista acompanhadora, criou uma brecha para segurar minha mão dizendo que aquela música é muito difícil.
No meio do papel assoado e os olhos inchados lembrei de sábado quando desci do palco e uma ex professora de canto me disse o quanto eu cresci e o quanto estava impressionada comigo. Logo antes de uma amiga, mais uma cantora, que segurou minhas mãos, me olhou nos olhos e disse "Nível 3, nível 10, que se dane! O que você tem elas nunca vão ter! Alma! É a beleza da música!"
Pensando um pouco mais ainda lembrei de uma colega do piano, produtora, que uma vez fui consultar depois de cantar: "Desafinações a parte, o que você achou???" "Perfeito. Uma cantora de fama nacional, internacional se você quiser. Porque fulana e cicrana foram extremamente afinadas, mas você fez música!"
E aí eu me pergunto e pergunto a vocês: até que ponto o Tiago é burro? Até que ponto isso importa? Ele vai sair da escola e nunca mais vai precisar responder em 5s quanto é 5 x 4, e vai ser um pianista maravilhoso, daqueles que faz a gente arrepiar...
Até que ponto Pedro é um aluno ruim? Ele vai passar em 1º lugar pra Medicina na UnB e ninguém vai se importar se ele não está sentado e calado o tempo todo. As pessoas vão aprender a lidar (e até gostar) da vivacidade dele...
E o André? Até que ponto ele é desobediente? Se ele não escuta o professor porque está preocupado com a menina que machucou o dedo ou tentando consertar o brinquedo do coleguinha? Ele vai se tornar psicólogo renomado e o melhor amigo que se pode ter, daqueles que larga tudo quando alguém precisar.
E eu? Sou assim tão desafinada? Até que ponto isso realmente importa? Até que ponto vale a pena pirar porque não consigo ouvir todos esses erros? Até que ponto os "portatos" são mesmo proibidos e até que ponto eu tenho o direito de fazer o que eu quiser com a minha voz porque é verdadeiro? Até que ponto sou cantora, e até que ponto é só teatro? Porque, afinal, todo ponto de vista é a vista de um ponto...
Morena - jun/10
quarta-feira, 30 de junho de 2010
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